terça-feira, janeiro 10, 2006

A Viuvez de sarong


Disse não sei quem que o desejo é triste. Triste de acordo, se for verdadeiro. Porque o falso desejo, o desejo apenas representado, é alegríssimo e salubérrimo. Eis o que eu queria dizer: - o carnaval que passou foi um espetáculo inédito na Terra. O turista que aqui veio teve uma sensação de erotismo unânime e colossal.
Os gregos antigos achavam que o estrangeiro é divino. E divino porque não traz nome, nem passado, nem história, nem lenda. Tudo o que diz, ou faz, tem um toque de mistério e de sagrado. Assim pensavam os gregos. Mas eu diria que o turista de carnaval não é divino, mas obtuso. Passou aqui os quatro dias e viu tudo errado.
"Errado, como?" - perguntará o leitor. Explico: - viu um erotismo que absolutamente não houve. Nunca se desejou tão pouco e repito: - nunca a mulher foi tão secundária para o homem, nunca o homem foi tão secundário para a mulher. Alguém poderá argumentar com os nus da televisão. E, de fato, o que se viu foi uma nudez indiscriminada, sim, uma nudez multiplicada, obsessiva e feroz.
Usou-se um sarong que realmente só era sarong na cor. Em verdade, em verdade, o sarong era uma nesga de pano, vaga folha de parreira, sei lá. A TV é que olhava tudo com a pupila violenta dos faunos. Lembro-me de um ventre num baile. Durante horas o câmara parou nessa obsessão abdominal. E o espectador só via aquele umbigo, sempre o mesmo. Minto. Via também a cicatriz de uma apendicite recente. Nada de caras, ou de gestos. Só o umbigo e só a cicatriz.
Na praia ou, pior, num campo de nudismo, há uma distância, uma distância que permite o mínimo de idealização da nudez. O olho não está tão próximo que possa descobrir uma pequena cicatriz. Ao passo que a TV elimina qualquer distância. Sua lente aproxima e amplia o umbigo e a cicatriz. Em todos os bailes, a função da imagem foi essa berrante ampliação.
No vídeo, o cavo umbigo era um súbito e feio abismo. E a penungem leve, que o olho não percebe, que o próprio tato não sente, vira uma flora liliputiana, mas visível. Os poros estão lá. Em casa, o telespectador vê, de repente, aquele umbigo invadir sua intimidade. Não são milhares, e eu quase dizia, milhões de umbigos. É um único, sempre e fatalmente o mesmo. E a mesma cicatriz da mesma apendicite.
Mas porque essa fixação cruel e cínica? Ao mesmo tempo em que era imposta a paisagem abdominal, vinha o locutor e falava em "festa sadia". Sadia, como? Sadia, o quê? E todas as estações, todas, insistiam em chamar tudo de "sadio". Uma cidade inteira se despia para milhões de telespctadores. Isso era profundamente "sadio". Uma câmara fixava um único e exclusivo umbigo. Muito saudável. E a cicatriz enfiada na cara do telespectador? Saudabilíssima.
O pobre turista, com a sua obtusidade de turista, via em cada rapaz um fauno de gaita e em cada mocinha uma ninfa de tapete. Mas dizia eu que o desejo não tem nada a ver com alegria e nada a ver com multidão. O desejo é triste e exije o pudor, o segredo, o mistério, a exclusividade do casal (desculpem estar aqui proclamando o óbvio). Aí está dito tudo: - o casal.
Acabamos de ver uma festa coletiva, em que o casal não teve função, nem destino. E os pares que se beijavam para milhões de telespectadores eram falsos casais, fingindo um desejo, representando um amor. Conheço um rapaz que conheceu e amou uma pequena. Imediatamente, os dois construiram uma solidão desesperadora. Ninguém vê o rapaz, ninguém vê a pequena. Eles andam por não sei que catacumbas, não sei que terrenos baldios. Deus me livre que fossem os dois para o baile do Municipal, que é, justamente, o túmulo ululante do amor e, até, do simples e animal desejo. Sempre que um homem e uma mulher se gostam precisam estar prodigiosamente sós, como se fossem o primeiro, único e último casal da Terra.
Nunca houve um carnaval tão triste, porque nunca houve um carnaval tão nu. Dirá alguém que minha obsessão pela nudez é fixação infantil. Não sei se infantil, mas é uma fixação. Os jornais e os locutores vão falar de "alegria, alegria". Realmente, não houve tal. Nada mais triste do que a nudez sem amor. Mas o nu é sempre tão belo, dirão alguns. Nem isso. É feio, e repito: - sem amor, é feíssimo.
Ontem, pela manhã, saio de casa perto do meio-dia. Em baixo, na porta, encontro um amigo. Já no cumprimento sinto a sua amargura. Seu lábio tem o ricto cruel de certas máscaras cesarianas. Diz o "bom-dia" e logo geme: - "Como é feio um umbigo! Você não acha um umbigo um negócio feio pra burro?". Pedia, pelo amor de Deus, a minha soliedariedade estética. Sim, quarta-feira a cidade acordou com o tédio cruel, uma ressaca insuportável de umbigos femininos. Estamos todos ressentidos contra eles.
E deprime ver a soma de esforços e de conivências que uma simpes nudez exige. Uma garota faz, ou compra, um sarong equivalente à folha de parreira. Mas ela não faria isso sozinha. O uso do sarong seria impossível sem o apoio do pai, da mãe, dos irmãos, do marido, do namorado, dos vizinhos, das autoridades, da imprensa, rádio e televisão. Todos aceitam e estimulam porque todos, inclusive as autoridades, querem ser "pra frente". Vi, no Municipal, a viúva de um aviador que se espatifou contra a montanha. Pôs ela um sarong na sua viuvez e foi sambar. Quero crer que o falecido também autorizou.
Vejam quantas instituições se juntaram para promover um símples umbigo. E, então, a mocinha vai para o Municipal. Será vista por dez mil pessoas no baile. Vamos somar as dez mil pessoas e mais cinco milhões de telespectadores da cidade e Estados. Portanto, cinco milhões e dez mil vão ter o que devia ser exclusividade do bem-amado. E como a televisão amplia mais do que o olho do ser amado, este não verá o que cinco milhões viram com a mais deslavada nitidez.
E perguntará o leitor: - "quer dizer que somos todos cínicos?" Exatamente: - cínicos. Não me venham falar em alegria. Na quarta-feira de cinzas o brasileiro acordou com este sentimento inexorável: - como é feia, triste, humilhada, ofendida, a nudez sem amor.


[29/2/1968]

NELSON RODRIGUES

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