sábado, fevereiro 27, 2010

Bondade mesquinha
Olavo de Carvalho

Diário do Comércio, 19 de outubro de 2009


Nosso presidente, que jamais derramou uma lágrima pelos 40 mil brasileiros assassinados anualmente e muito menos fez algo para protegê-los, derreteu-se em prantos ante a escolha do Rio para sede dos próximos Jogos Olímpicos. Não é a primeira vez que ele dá mostras de sua notável capacidade lacrimejante. Ele chorou duplamente ao ser eleito e ao ser empossado, chorou vezes inumeráveis ao anunciar do alto dos palanques seus planos de governo, chorou no enterro do deputado petista Carlos Wilson, no das vítimas da chuva em Sta. Catarina e no dos mortos do acidente em Alcântara, chorou ao inaugurar o projeto "Luz Para Todos", chorou ao enaltecer seus próprios feitos num encontro de estudantes em São Paulo, chorou no Senegal dizendo que era de arrependimento pela escravatura, chorou ao prometer acabar com o desemprego em 2003 e depois novamente em 2006 (os desempregados continuam chorando até agora), e chorou quando o deputado Roberto Jefferson lhe falou do Mensalão: soluçou tão convulsivamente que ficou até parecendo que era o último a saber do imbroglio. São apenas amostras colhidas a esmo. Digitando "Lula chora" no Google obtive 29.600 respostas, e ante a mera perspectiva de examiná-las uma a uma quem sente ganas de chorar sou eu.

Diante dessa torrente de lágrimas, seria injusto negar que o sr. presidente tenha bons sentimentos. Que os tem, tem. O problema é que são morbidamente seletivos: para seus companheiros de militância, para os grupos sociais onde espera recrutar eleitores, e sobretudo para si próprio, coitadinho, é uma comoção arrebatadora, um enternecimento irresistível, um transbordamento de compaixão sem fim. Para os demais, tudo o que ele tem a oferecer é aquela forma requintada de crueldade passiva que se chama a indiferença. Incluem-se nessa categoria os 40 mil acima mencionados, as crianças brasileiras envenenadas pelas drogas das Farc, os malditos 17 mil reacionários fuzilados por seu amigo Fidel Castro e sobretudo as vítimas do terrorismo nacional, cujas famílias vivem no mais abjeto esquecimento enquanto os assassinos de seus pais e avós se empanturram de verbas federais, seja na condição de "indenizados", seja na de ministros, senadores, deputados, chefes de gabinete etc. etc. etc.

Longe de mim a suspeita de que as lágrimas de S. Excia. sejam fingidas. É justamente a espontaneidade delas que mostra o quanto os bons instintos presidenciais são seletivos, daquela seletividade natural e até inconsciente que revela, num instante, uma personalidade, a forma inteira de uma alma e de uma consciência. Se essa seletividade privilegia, enfatiza e enaltece com naturalidade espantosa os interesses político-publicitários do sr. presidente e ao mesmo tempo o torna cego e insensível para tudo o mais, não é porque haja nela alguma premeditação astuta, mas, bem ao contrário, é porque, simplesmente, ele é assim.

Sua consciência moral, em suma, é deformada pelo longo hábito, meio partidário, meio mafioso, da separação estanque entre os "amigos" e os "outros", entre "gente nossa" e "aquela gente". Se seus acessos de bondade vêm a ser sempre politicamente oportunos, não é porque ele os planeje, mas porque, no fundo da sua alma, ele não consegue conceber o bem senão sob a forma estreita e específica de uma estratégia partidária, sendo perfeitamente indiferente a tudo o que fique fora ou acima dela.

Especialmente acima. A prova mais patente da sua insensibilidade a quaisquer valores que transcendam a luta partidária veio logo após sua audiência com o Papa -- momento culminante na vida de todo fiel católico --, quando, tendo comungado sem confessar, redobrou a blasfêmia ao fazer chacota do ocorrido, dizendo que assim procedera por ser alma sem pecados. Para esse homem, até mesmo a religião que diz professar ardentemente não tem nenhum significado em si mesma, o Deus que ele diz adorar não tem nenhuma autoridade moral para julgá-lo, devendo antes amoldar-se com humildade à condição de personagem de piada instrumental ad majorem Lulis gloriam. Que depois, na África, ele exiba arrependimento por uma escravatura que jamais praticou, e faça acompanhar suas lágrimas da conveniente citação papal, eis aí a prova de que, na escala da sua consciência, sua alma cristã tem mais satisfações a prestar ante o auditório imediato do que ante o Juízo Final.

Subjugando ao oportunismo partidário mesmo aquilo que há de mais alto e venerável, suas efusões de bondade não são senão expressões visíveis de uma mesquinharia profunda, de uma pequenez de alma que, para dizer o mínimo, não é um bom exemplo para se dar às crianças.
Desprovido, ao menos aparentemente, da truculência natural de um Fidel Castro ou de um Pol-Pot, bem como da fanfarronice histriônica de um Hugo Chávez, esse homem traz no coração, como eles, aquela típica mistura de insensibilidade moral e sentimentalismo kitsch que caracteriza os sociopatas. Sua indiferença ao sofrimento real dos estranhos ao seu círculo de interesses contrasta de tal modo com suas tiradas de autopiedade obscena e com seu emocionalismo à flor da pele nas ocasiões politicamente convenientes, que não vejo como escapar à conclusão de que S. Excia. é uma alma deformada, cuja feiúra, exibida com ingênuo despudor a cada novo pronunciamento seu, condensa simbolicamente a miséria geral da época.

segunda-feira, fevereiro 15, 2010

Nelson Rodrigues - Um visionário


Os idiotas confessos
Nelson Rodrigues
“A cabra vadia”

Antigamente, o idiota era o idiota. Nenhum ser tão sem mistério e repito: — tão cristalino. O sujeito o identificava, a olho nu, no meio de milhões. E mais: — o primeiro a identificar-se como tal era o próprio idiota. Não sei se me entendem. No passado, o marido era o último a saber. Sabiam os vizinhos, os credores, os familiares, os conhecidos e os desconhecidos. Só ele, marido, era obtusamente cego para o óbvio ululante.

Sim, o traído ia para as esquinas, botecos e retretas gabar a infiel: — “Uma santa! Uma santa!”. Mas o tempo passou. Hoje, dá-se o inverso. O primeiro a saber é o marido. Pode fingir-se de cego. Mas sabe, eis a verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia endereço, hora, dia etc. etc.

Pois o idiota era o primeiro a saber-se idiota. Não tinha nenhuma ilusão. E uma das cenas mais fortes que vi, em toda a minha infância, foi a de uma autoflagelação. Um vizinho berrava, atirando rútilas patadas: — “Eu sou um quadrúpede!”. Nenhuma objeção. E, então, insistia, heróico: — “Sou um quadrúpede de 28 patas!”. Não precisara beber para essa extroversão triunfal. Era um límpido, translúcido idiota.

E o imbecil como tal se comportava. Nascia numa família também de imbecis. Nem os avós, nem os pais, nem os tios, eram piores ou melhores. E, como todos eram idiotas, ninguém pensava. Tinha-se como certo que só uma pequena e seletíssima elite podia pensar. A vida política estava reservada aos “melhores”. Só os “melhores”, repito, só os “melhores” ousavam o gesto político, o ato político, o pensamento político, a decisão política, o crime político.

Por saber-se idiota, o sujeito babava na gravata de humildade. Na rua, deslizava, rente à parede, envergonhado da própria inépcia e da própria burrice. Não passava do quarto ano primário. E quando cruzava com um dos “melhores”, só faltava lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. Nunca, nunca o idiota ousaria ler, aprender, estudar, além de limites ferozes. No romance, ia até ao Maria, a desgraçada.

Vejam bem: — o imbecil não se envergonhava de o ser. Havia plena acomodação entre ele e sua insignificância. E admitia que só os “melhores” podem pensar, agir, decidir. Pois bem. O mundo foi assim, até outro dia. Há coisa de três ou quatro anos, uma telefonista aposentada me dizia: — “Eu não tenho o intelectual muito desenvolvido”. Não era queixa, era uma constatação. Santa senhora! Foi talvez a última idiota confessa do nosso tempo.

De repente, os idiotas descobriram que são em maior número. Sempre foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais descobriram: — a vergonhosa inferioridade numérica dos “melhores”. Para um “gênio”, 800 mil, 1 milhão, 2 milhões, 3 milhões de cretinos. E, certo dia, um idiota resolveu testar o poder numérico: — trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A multidão crescia como num pesadelo. Em quinze minutos, mugia, ali, uma massa de meio milhão.

Se o orador fosse Cristo, ou Buda, ou Maomé, não teria a audiência de um vira-lata, de um gato vadio. Teríamos de ser cada um de nós um pequeno Cristo, um pequeno Buda, um pequeno Maomé. Outrora, os imbecis faziam platéia para os “superiores”. Hoje, não. Hoje, só há platéia para o idiota. É preciso ser idiota indubitável para se ter emprego, salários, atuação, influência, amantes, carros, jóias etc. etc.

Quanto aos “melhores”, ou mudam, e imitam os cretinos, ou não sobrevivem. O inglês Wells, que tinha, em todos os seus escritos, uma pose profética, só não previu a “invasão dos idiotas”. E, de fato, eles explodem por toda parte: são professores, sociólogos, poetas, magistrados, cineastas, industriais. O dinheiro, a fé, a ciência, as artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos patetas.

E, então, os valores da vida começaram a apodrecer. Sim, estão apodrecendo nas nossas barbas espantadíssimas. As hierarquias vão ruindo como cúpulas de pauzinhos de fósforos. E nem precisamos ampliar muito a nossa visão. Vamos fixar apenas o problema religioso. A Igreja tem uma hierarquia de 2 mil anos. Tal hierarquia precisa ser preservada ou a própria Igreja não dura mais quinze minutos. No dia em que um coroinha começar a questionar o papa, ou Jesus, ou Virgem Maria, será exatamente o fim.

É o que está acontecendo. Nem se pense que a “invasão dos idiotas” só ocorreu no Brasil. Se fosse uma crise apenas brasileira, cada um de nós podia resmungar: — “Subdesenvolvimento” — e estaria encerrada a questão. Mas é uma realidade mundial. Em que pese a dessemelhança de idioma e paisagem, nada mais parecido com um idiota do que outro idiota. Todos são gêmeos, estejam uns aqui, outros em Cingapura.

Mas eu falava de que mesmo? Ah, da Igreja. Um dia, ao voltar de Roma, o dr. Alceu falou aos jornalistas. E atira, pela janela, 2 mil anos de fé. É pensador, um alto espírito e, pior, uma grande voz católica. Segundo ele, durante os vinte séculos, a Igreja não foi senão uma lacaia das classes dominantes, uma lacaia dos privilégios mais hediondos. Portanto, a Igreja é o próprio Cinismo, a própria Iniqüidade, a própria Abjeção, a própria Bandalheira (e vai tudo com a inicial maiúscula).

Mas quem diz isso? É o Diabo, em versão do teatro de revista? Não. É uma inteligência, uma cultura, um homem de bem e de fé. De mais a mais, o dr. Alceu tinha acabado de beijar a mão de Sua Santidade. Vinha de Roma, a eterna. E reduz a Igreja a uma vil e gigantesca impostura. Mas se ele o diz, e tem razão, vamos, já, já, fechar a Igreja e confiscar-lhe as pratas.

Cabe então a pergunta: — “O dr. Alceu pensa assim?”. Não. Em outra época, foi um dos “melhores”. Mas agora é preciso adular os idiotas, conquistar-lhes o apoio numérico. Hoje, até o gênio se finge imbecil. Nada de ser gênio, santo, herói ou simplesmente homem de bem. Os idiotas não os toleram. E as freiras põem short, maiô e posam para Manchete como se fossem do teatro rebolado. Por outro lado, d. Hélder quer missa com reco-reco, tamborim, pandeiro e cuíca. É a missa cômica e Jesus fazendo passista de Carlos Machado. Tem mais: — o papa visitará a América Latina. Segundo os jornais, teme-se que o papa seja agredido, assassinado, ultrajado etc. etc. A imprensa dá a notícia com a maior naturalidade, sem acrescentar ao fato um ponto de exclamação. São os idiotas, os idiotas, os idiotas.

[19/8/1968]

In Rodrigues, Nelson. A cabra vadia: novas confissões. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 210.