sábado, janeiro 28, 2006

Cristaldo


O texto abaixo foi retirado por mim do blog do grande Janer Cristaldo. Fala de um assunto muito em voga atualmente. Para saber mais, leia. Para saber bem mais, vá ao blog do Cristaldo:
www.cristaldo.blogspot.com

Janer Cristaldo

Segunda-feira, Janeiro 16, 2006

A EXTINÇÃO DO MULATO


Movimentos ecologistas estão preocupados com a extinção de baleias, ursos polares, micos-leões-dourados e outras espécies. Pessoalmente, estou preocupado com outra espécie bem mais próxima e mais valiosa, os mulatos e as mulatas. Que, dependendo da inépcia de nossos legisladores, em breve será extinta. Pelo menos do ponto de vista legal. É o que propõe um monstrengo jurídico, de autoria do senador Paulo Paim, o projeto de lei n° 3.198/2000, também chamado de Estatuto da Igualdade Racial. Já foi aprovado pelo Senado e tramita em regime de prioridade na Câmara dos Deputados. De uma só tacada, Paulo Paim extermina legalmente os mulatos do território pátrio: "para efeito deste Estatuto, consideram-se afro-brasileiros as pessoas que se classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga".

Demorou mas chegou até nós. Está sendo introduzida legalmente no Brasil a classificação ianque, que só consegue ver pretos e brancos em sua sociedade e nega a miscigenização. Este sórdido projeto é antigo, fruto da exportação dos conflitos raciais dos Estados Unidos para um país onde o negro sempre conviveu bem com o branco, tanto que o mulato constitui um contingente considerável da população. Mal foi eleito, o Supremo Apedeuta saiu arrotando urbi et orbi que o Brasil era a segunda nação negra do mundo, depois da Nigéria. Até mesmo uma pessoa aparentemente culta, como Celso Amorim, ministro das Relações Exteriores, prestou-se a corroborar o sofisma safado: "como declarou o presidente Lula, o estreitamento das relações com a África constitui para o Brasil uma obrigação política, moral e histórica. Com 76 milhões de afrodescendentes, somos a segunda maior nação negra do mundo, atrás da Nigéria, e o governo está empenhado em refletir essa circunstância". Ao colocar todos afrodescendentes no mesmo saco dos negros, o ministro demonstra que, nos círculos do poder, mesmo homens cultos se dobram à bajulação.

Ora, segundo o IBGE, a população negra do Brasil, em 99, era de apenas 5,4%. Com o acréscimo de 39,9% do contingente de mulatos, o Brasil estaria perto de ser definido como um país majoritariamente negro, como aliás é hoje considerado por muitos americanos e europeus. Com o projeto do senador, não teremos mais mulatos (ou pardos, no jargão do IBGE), mas apenas afro-brasileiros. O que os ativistas negros esquecem é que o mulato pode denominar-se tanto afro-brasileiro como euro-brasileiro. A tônica no afro tem intenções óbvias: aumentada artificialmente a população negra, torna-se fácil pressionar os legisladores para obter mais vantagens para os que não são brancos. Os ativistas negros no Congresso querem ganhar privilégios no tapetão da semântica.

Sensível ao apelo dos votos, Geraldo Alckmin está encaminhando à Assembléia Legislativa projeto de lei que estabelece o acréscimo de pontuação aos afrodescendentes no concurso público para a Defensoria do Estado. Após os Estados Unidos estarem abandonando a política das ações afirmativas, o governador paulista, em um gesto de mimetismo terceiro-mundista tardio, afirma: "Estamos fortalecendo nossa proposta de ações afirmativas". É um modo de dizer. O que Alckmin parece ignorar é o artigo 5° da Constituição, que reza: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Alckmin é hoje visto como uma alternativa à permanência do Supremo Apedeuta no poder. Triste alternativa, a de um político que, em sua ambição de votos, começa sua campanha rasgando de uma penada a Constituição brasileira. Se já rasga a Carta Magna enquanto candidato a candidato, podemos imaginar o que ousaria quando no poder.

Nas últimas décadas, os movimentos negros insistiram na idéia de que raça não existe, ser negro seria apenas uma questão de melanina. Quando começou a surgir no Brasil a infeliz idéia ianque de cotas, tanto para a universidade como para admissão em empregos públicos, assistimos a uma súbita reviravolta: raça agora existe e deve ser declarada. O malsinado projeto do senador gaúcho determina que, em várias circunstâncias - no Sistema Único de Saúde, nos sistemas de informação da Seguridade Social, em todos os registros administrativos direcionados aos empregadores e aos trabalhadores do setor privado e do setor público - o quesito raça/cor será obrigatoriamente introduzido e coletado, de acordo com a autoclassificação.

Se até bem pouco afirmar a existência de raças era sinônimo de racismo, a noção de raça agora passou a ser algo bom, digno e justo. Para a advogada Flávia Lima, coordenadora do Programa de Justiça da ONG Núcleo de Estudos Negros, em Florianópolis (SC), a classificação dos indivíduos segundo a raça pode ser um instrumento na luta contra o racismo. A obrigatoriedade de registro da cor seria um ponto positivo do Estatuto, já que permite investigações sobre racismo em diversas esferas da sociedade.

Ó tempora, ó mores!O que ontem era estigma, o registro da cor, passa hoje a ser virtude. Os movimentos negros, ao que tudo indica, terão de jogar ao lixo suas velhas bandeiras. Para o Supremo Apedeuta, por exemplo, até os nigerianos já são afrodescendentes.

Como observa Demétrio Magnoli, na Folha de São Paulo, "os modelos são a África do Sul do apartheid e a Ruanda dos belgas, com suas carteiras de identidade etno-raciais. A nação deixará de ser um contrato entre indivíduos para se tornar uma confederação de raças". Se aprovado na Câmara este projeto infame, os negros e mulatos terão carteirinha única, e esta jamais será a de mulato. Imagine o leitor se um deputado branco sugerisse a instituição da carteirinha de negro. Seria imediatamente comparado a Hitler, que identificou os judeus com a tecnologia Hollerith de cartões perfurados da IBM.

Como os deputados hoje estão mais preocupados em salvar a própria pele do que em discutir quesitos de raça ou cor, corremos o sério risco de que o absurdo estatuto adquira força de lei. Os políticos sentem-se tão à vontade para praticar este estupro, que já o incluem em suas promessas de campanha, como o fez Alckmin. Se a Constituição já foi violada mediante compra de votos, violação a mais violação a menos tanto faz. E assim desaparecerá, banida por lei, a prova mais incontestável do caldeamento de raças no Brasil, o mulato.

Os velhos comunistas podem ter perdido a guerra, mas não perderam os vícios. Luta de classes morta, luta racial posta.

- Enviado por Janer @ 11:32 AM

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Estatuto do Homem


Artigo I - Fica decretado que agora vale a verdade. Agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.


Artigo II - Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas têm direito a converter-se em manhãs de domingo.


Artigo III - Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV - Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único: O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino.

Artigo V - Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo, porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.


Artigo VI - Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII - Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII - Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá a planta o milagre da flor.


Artigo IX - Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.


Artigo X - Fica permitido a qualquer pessoa, a qualquer hora da vida, o uso do traje branco.

Artigo XI - Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.


Artigo XII - Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.


Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.


Artigo XIII - Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.


Artigo Final. Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.



Thiago de Mello

sexta-feira, janeiro 13, 2006

"No amor somos todos fantoches:Não escolhemos nem certo, nem errado, porque simplesmente não escolhemos.
No amor basta amar!
Afinal, não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo".
Nelson Rodrigues

terça-feira, janeiro 10, 2006

Crônica pré e pós carnaval

Amadas, a crônica abaixo, escrita pelo genial Nelson Rodrigues após o carnaval de 1968, é um dos seus momentos visionários. Aconselho-as a Lê-la antes e depois do carnaval. Depois me digam o sentimento que ela suscita. Percebam como o Nelson está certo (mais uma vez)na sua feliz e inteligente visão do óbvio.
Como ele mesmo diria: "Só os profetas enxergam o óbvio!".

A Viuvez de sarong


Disse não sei quem que o desejo é triste. Triste de acordo, se for verdadeiro. Porque o falso desejo, o desejo apenas representado, é alegríssimo e salubérrimo. Eis o que eu queria dizer: - o carnaval que passou foi um espetáculo inédito na Terra. O turista que aqui veio teve uma sensação de erotismo unânime e colossal.
Os gregos antigos achavam que o estrangeiro é divino. E divino porque não traz nome, nem passado, nem história, nem lenda. Tudo o que diz, ou faz, tem um toque de mistério e de sagrado. Assim pensavam os gregos. Mas eu diria que o turista de carnaval não é divino, mas obtuso. Passou aqui os quatro dias e viu tudo errado.
"Errado, como?" - perguntará o leitor. Explico: - viu um erotismo que absolutamente não houve. Nunca se desejou tão pouco e repito: - nunca a mulher foi tão secundária para o homem, nunca o homem foi tão secundário para a mulher. Alguém poderá argumentar com os nus da televisão. E, de fato, o que se viu foi uma nudez indiscriminada, sim, uma nudez multiplicada, obsessiva e feroz.
Usou-se um sarong que realmente só era sarong na cor. Em verdade, em verdade, o sarong era uma nesga de pano, vaga folha de parreira, sei lá. A TV é que olhava tudo com a pupila violenta dos faunos. Lembro-me de um ventre num baile. Durante horas o câmara parou nessa obsessão abdominal. E o espectador só via aquele umbigo, sempre o mesmo. Minto. Via também a cicatriz de uma apendicite recente. Nada de caras, ou de gestos. Só o umbigo e só a cicatriz.
Na praia ou, pior, num campo de nudismo, há uma distância, uma distância que permite o mínimo de idealização da nudez. O olho não está tão próximo que possa descobrir uma pequena cicatriz. Ao passo que a TV elimina qualquer distância. Sua lente aproxima e amplia o umbigo e a cicatriz. Em todos os bailes, a função da imagem foi essa berrante ampliação.
No vídeo, o cavo umbigo era um súbito e feio abismo. E a penungem leve, que o olho não percebe, que o próprio tato não sente, vira uma flora liliputiana, mas visível. Os poros estão lá. Em casa, o telespectador vê, de repente, aquele umbigo invadir sua intimidade. Não são milhares, e eu quase dizia, milhões de umbigos. É um único, sempre e fatalmente o mesmo. E a mesma cicatriz da mesma apendicite.
Mas porque essa fixação cruel e cínica? Ao mesmo tempo em que era imposta a paisagem abdominal, vinha o locutor e falava em "festa sadia". Sadia, como? Sadia, o quê? E todas as estações, todas, insistiam em chamar tudo de "sadio". Uma cidade inteira se despia para milhões de telespctadores. Isso era profundamente "sadio". Uma câmara fixava um único e exclusivo umbigo. Muito saudável. E a cicatriz enfiada na cara do telespectador? Saudabilíssima.
O pobre turista, com a sua obtusidade de turista, via em cada rapaz um fauno de gaita e em cada mocinha uma ninfa de tapete. Mas dizia eu que o desejo não tem nada a ver com alegria e nada a ver com multidão. O desejo é triste e exije o pudor, o segredo, o mistério, a exclusividade do casal (desculpem estar aqui proclamando o óbvio). Aí está dito tudo: - o casal.
Acabamos de ver uma festa coletiva, em que o casal não teve função, nem destino. E os pares que se beijavam para milhões de telespectadores eram falsos casais, fingindo um desejo, representando um amor. Conheço um rapaz que conheceu e amou uma pequena. Imediatamente, os dois construiram uma solidão desesperadora. Ninguém vê o rapaz, ninguém vê a pequena. Eles andam por não sei que catacumbas, não sei que terrenos baldios. Deus me livre que fossem os dois para o baile do Municipal, que é, justamente, o túmulo ululante do amor e, até, do simples e animal desejo. Sempre que um homem e uma mulher se gostam precisam estar prodigiosamente sós, como se fossem o primeiro, único e último casal da Terra.
Nunca houve um carnaval tão triste, porque nunca houve um carnaval tão nu. Dirá alguém que minha obsessão pela nudez é fixação infantil. Não sei se infantil, mas é uma fixação. Os jornais e os locutores vão falar de "alegria, alegria". Realmente, não houve tal. Nada mais triste do que a nudez sem amor. Mas o nu é sempre tão belo, dirão alguns. Nem isso. É feio, e repito: - sem amor, é feíssimo.
Ontem, pela manhã, saio de casa perto do meio-dia. Em baixo, na porta, encontro um amigo. Já no cumprimento sinto a sua amargura. Seu lábio tem o ricto cruel de certas máscaras cesarianas. Diz o "bom-dia" e logo geme: - "Como é feio um umbigo! Você não acha um umbigo um negócio feio pra burro?". Pedia, pelo amor de Deus, a minha soliedariedade estética. Sim, quarta-feira a cidade acordou com o tédio cruel, uma ressaca insuportável de umbigos femininos. Estamos todos ressentidos contra eles.
E deprime ver a soma de esforços e de conivências que uma simpes nudez exige. Uma garota faz, ou compra, um sarong equivalente à folha de parreira. Mas ela não faria isso sozinha. O uso do sarong seria impossível sem o apoio do pai, da mãe, dos irmãos, do marido, do namorado, dos vizinhos, das autoridades, da imprensa, rádio e televisão. Todos aceitam e estimulam porque todos, inclusive as autoridades, querem ser "pra frente". Vi, no Municipal, a viúva de um aviador que se espatifou contra a montanha. Pôs ela um sarong na sua viuvez e foi sambar. Quero crer que o falecido também autorizou.
Vejam quantas instituições se juntaram para promover um símples umbigo. E, então, a mocinha vai para o Municipal. Será vista por dez mil pessoas no baile. Vamos somar as dez mil pessoas e mais cinco milhões de telespectadores da cidade e Estados. Portanto, cinco milhões e dez mil vão ter o que devia ser exclusividade do bem-amado. E como a televisão amplia mais do que o olho do ser amado, este não verá o que cinco milhões viram com a mais deslavada nitidez.
E perguntará o leitor: - "quer dizer que somos todos cínicos?" Exatamente: - cínicos. Não me venham falar em alegria. Na quarta-feira de cinzas o brasileiro acordou com este sentimento inexorável: - como é feia, triste, humilhada, ofendida, a nudez sem amor.


[29/2/1968]

NELSON RODRIGUES